A chamada de capa diz assim: "Missão impossível? Dá para viver segundo a Bíblia hoje?" A revista Galileu inspirou-se na experiência do americano A. J. Jacobs, jornalista que viveu, por um ano, segundo os preceitos bíblicos, do Velho Testamento, diga-se. Claro, rendeu um livro que se tornou best-seller nos EUA e logo será lançado no Brasil.
A idéia não é incomum. Livros e documentários nasceram assim nos últimos tempos. Outro americano há pouco tempo atrás viveu três meses à base de comida fast food - McDonalds - o que lhe rendeu o documentário "Super size me" (algo como meu super tamanho) que obrigou a empresa a disponibilizar pratos menos calóricos além de grande debate que gerou em todo mundo.
A Galileu, antes dela a Superinteressante, revistas que vendem informação científica com certo estardalhaço, fazem pelo menos metade das edições com algum assunto religioso ao logo do ano. Em cada um deles puxam para a provocação, o exagero, algo que desperte o interesse dos leitores, afinal é preciso vender. Para se ter uma idéia, há dois números a Galileu trazia na capa o título: "A guerra contra Deus". Tratava sobre a recente onda de livros de ateus que, segundo dizem, provam que Deus foi passado para trás por causa do avanço científico. Já abordamos este assunto aqui.
Bem, a experiência da Galileu consistiu em escalar um de seus jornalistas para passar dois meses vivendo segundo a Bíblia. O resultado, eu diria, é um pastelão. O autor da façanha, Cláudio Julio Tognolli, é ateu de carteirinha, não que isso signifique alguma coisa.
Misturaram alhos com bugalhos, ou para ser simpático, fizeram perguntas infantis, coisa de alguém que nunca leu a Bíblia e, no entanto, adora passar a idéia de que bastam umas duas folheadas e pronto, vira especialista bíblico mostrando todas as suas "contradições". Aliás, esta palavrinha é falada o tempo todo na reportagem.
Se você tem bom humor (é preciso ter) e não acha que a experiência do Cláudio é uma afronta a Deus, recomendo a leitura, chega a ser engraçado pela literalidade com que ele interpreta o texto. Talvez deva ser um alerta para todos os cristãos.
Uma palavra do "ateu" Claudio, entretanto, cabe destacar e a uso como ponto de partida de nosso texto: "Vê-se que seguir a Bíblia não é apenas mudar a casca que nos cobre: é colocar-se em xeque. Mergulhar para dentro de você mesmo, tendo como foice um ponto de interrogação, é quase que uma operação sem anestesia." Sem se dar conta, ele mesmo achou uma bela resposta. O que é seguir as orientações morais, éticas e espirituais da Bíblia para nós hoje? Ou para usar um termo do autor da reportagem: "Afinal, dá para levar tantas determinações de Deus ao pé da letra no insano século 21?"
São duas respostas. Sim e não. Se a abordagem é a mesma da reportagem, é a de muitos cristãos - infelizmente - que privilegiam o legalismo; a barganha com Deus; que pensam agradá-Lo seguindo regras; o guardar dias e fazer rituais; comer isso, mas não aquilo; vestir tal roupa; manter cabelos e barbas. A resposta é um redondo Não. É uma carga excessivamente pesada, como exclama Brennan Manning: "Que fardo insuportável! A luta para se tornar apresentável diante de um Deus distante e perfeccionista é exaustiva." *
Mas tão somente se tomamos Jesus como modelo, se nos submetemos à Graça de Deus que nos amou primeiro; que nos dá um presente imerecido; que nos justifica; que aceita o homem mediante o sacrifício de Cristo; que não se impressiona conosco, pois é mais íntimo de nós do que nós mesmos, como disse Agostinho; então podemos dizer que Sim.
Lembremo-nos das palavras de Jesus: "Venham para mim todos vocês que estão cansados de carregar o peso do seu fardo, e eu lhes darei descanso. Carreguem a minha carga e aprendam de mim, porque sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para suas vidas. Porque a minha carga é suave e o meu fardo é leve." (Mt 11.28-30 - EP)
Na casa dos amigos Lázaro, Maria e Marta, Jesus chama a atenção desta última atarefada que estava, sobrecarregada, preocupada com os afazeres domésticos: "...andas inquieta e te preocupas com muitas coisas...pouco é necessário... (Lc 10.41,42). Amor define todo o modo de seguir a Bíblia. Amar a Deus, a si mesmo e ao próximo. Toda a lei acaba aqui. Amor se recebe e amar se aprende pelo modelo do Emanuel.
Erram aqueles que acham que seguir a Bíblia é guardar leis. Amaldiçoar-se com uma carga enorme de coisas a serem feitas não nos tornam agradáveis perante Deus. Diante dele, acertou Cláudio, basta a exposição nua, não é suficiente cobrir-se com uma carapaça de regras, os fariseus sabiam fazê-lo e deles já se sabe qual é a opinião de Jesus. Um deles bateu no peito e disse: "Ó Deus, eu te agradeço porque não sou avarento, nem desonesto, nem imoral como as outras pessoas." (Lc 18.11 - NTLH).
Jesus escandalizou aos religiosos porque estava sempre muito para além da letra da lei. Nenhum texto será capaz de expressar a vontade de Deus, o ser parecido com Jesus, sim. Impossível? Se pensarmos em algo instantâneo, um boneco que sai de uma linha de montagem, sim. Mas se imaginamos um processo, um crescer, um desenvolver a salvação (Fp 2.12) mediante o relacionamento vivo com Jesus, então seguir a Bíblia é mais que possível, pois não importa a tormenta do "insano século XXI" como disse a reportagem, não importa, afinal, o que está lá fora, por mais terrível que seja. Importa se a pessoa é habitação de Deus. Tem que ser perfeito para isso? Os religiosos legalistas, os incrédulos, os cínicos, dizem que sim. Mas esta perfeição tomamos de empréstimo de Jesus. Perfeição pega.
Relembro o Cláudio novamente. Seguir a Bíblia é colocar-se em xeque. Não submetendo-se a mil regras, já dissemos. É permitir, disse João Batista, que Ele cresça e o eu diminua. A prioridade é dEle, a primazia em tudo. Alguém só se torna verdadeiro quando seus impostores são desmascarados e ele se desnuda em sua verdadeira face. Não é o que sociedade quer, os comportamentos, a moda, o protocolo, os rapapés sociais, é o que o Senhor quer que eu seja. E, digo, nascer de novo não é uma cirurgia sem anestesia.
Eudes Oliveira de Alencar
* Texto do livro "O impostor que vive em mim" (pág 95)
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